"Uma Confissão" [Liev Tolstói] Resenha



Indubitavelmente a crença na fé cristã é algo desafiador. O binômio "credo quia absurdum" [creio porque é absurdo] versus "credo ut intelligam" [creio para que possa entender] sempre tiveram relacionados na história da crença ou descrença no ocidente. A trajetória do mais bem-sucedido autor cristão moderno [C.S.Lewis] rumo a fé foi de conflito ininterrupto entre fé e razão. Outros declararam todo o desprezo as crenças cristãs. Mas entre o impasse fideísmo [a fé não é racional] e uma fé racional [fé e razão] surgiu na história do cristianismo uma terceira via, o contato direto com o divino sem os entraves dos absurdos da fé. Essa é a via mística. Haja vistas para Antão, Macário, dentre número quase sem fim.

Penso que foi melhor introduzir esta resenha da forma acima para que possamos entrar em "Uma confissão" do iminente escritor russo Liev Tolstói. Pervadido por uma crise aos cinquenta anos. Bem estabelecido financeiramente. Bem casado. Famoso em todo o mundo com seus imortais "Guerra e paz" e "Ana Karenina". Benquisto no círculo da intelligentsia. Rico. Mas isso não era o suficiente.

"Uma confissão" começa com breves exposições de como o autor foi perdendo a fé na tradição cristã pela versão ortodoxa russa desde a juventude. Ouvira acerca da inexistência de Deus antes do ensino superior. Uma vez adentrando na vida adulta já não mais via sentido em rezar, jejuar e ir à missa. Costume do povo russo. Mesmo assim sua bússola moral o incomodava. Mas as pessoas ao seu redor que só tinham nomes de cristãs não o inspiravam a manter um código de ética elevado. Estava só duplamente. Primeiro porque somente ele era responsável a agir conforme o padrão interior no qual cria apesar de ter deixado a igreja. Segundo que ninguém se incomodava se roubava, matava, adulterava etc. Sua própria tia desejava que Leon tivesse um caso com uma mulher rica e casada.

A guerra da Criméia chegou e Leon fora lutar. Matou, perseguiu, abusou das drogas da época, da luxúria. Tudo isso era normal aos parceiros e a sociedade russa. Mesmo assim sentia-se angustiado. Sua crença em Deus ainda não havia sido abalada. A crença nos que diziam seguir a igreja sim. Não havia diferença do círculo de gente cruel e um crente ortodoxo. Essa incongruência que fez desacreditar no sistema ortodoxo russo.

Ao voltar da guerra entrou em contato com o círculo dos cultos; professores e autores. Começou a escrever com propósito: ser famoso e ficar rico. Deu certo. Suas obras e textos fizeram sucesso. Ganhavam dinheiro em espécie. Muito dinheiro. O princípio era "não tenha certezas sobre o que ensinar, escreva freneticamente e aposte no inconsciente." Leon estranhava esse princípio. Mas como era a onda do momento. Lançou-se no palavrório sem fim dos escritores. Mas a desconfiança o atingiu por algum período e percebeu que todo aquele saber advinha de gente má. Gente degenerada, segundo o parecer do autor.

Foi que seguiu uma fase de viagens para o exterior, França, a fim de melhorar seus recursos intelectuais. A moda agora era o progresso. Mas um episódio, a guilhotina, pôs todo o entusiasmo de Leon por terra. Mesmo assim se lançou num projeto de ensinar os agricultores a fim de levar o progresso. O entusiasmo não era mais o mesmo. Mas permanecia a incerteza sobre o que ensinar. Esse princípio aprendido no círculo de intelectuais ao seu redor não havia sido desfeito. Mas não encontrou resposta. Numa crise resolve largar tudo e retirar-se para um encontro com a natureza, "viver igual bicho".

Chega o casamento. A vida literária não importa mais do que prover o sustento e a felicidade da esposa e do filho. Ainda escreve, mas não com o entusiasmo febril de antes. É nesse momento que lhe cai um abatimento mortal. "Qual o sentido da vida? Da minha vida em específico". "Para que sirvo?" A princípio Leon achava que estava com problemas mentais. Mas percebeu que tinha força intelectual para lutar contra essa prostração, e quando sua razão lhe sugeriu enforcar-se, teve força suficiente para evitar contatos com cordas, armas ou lâminas. O desejo foi forte, mas o desejo de compreender o que era a vida o motivava a ler as melhores mentes que refletiram sobre o tema: Sócrates, Buda, Salomão, Schopenhauer. Chegara ao perfeito pessimismo de cada autor desse. Sócrates e Buda [representando o pensamento oriental] prescrevia que a morte, a aniquilação é o desejo do sábio. Salomão ainda propõe um consolo ante o absurdo da vida. Schopenhauer, budista, já prescreve o fim de toda a realidade, a vontade, que é o nada. Foi o que sua razão pode concluir. Se é isso mesmo então volta-se a primeira solução: suicídio. Mas Leon acha que a vida é que gera a razão apesar dessa se rebelar contra a vida. Então há algo que é maior do que a proposta de sua razão. O sentimento que embala a humanidade; a sabedoria popular. Chegamos a vida por esse viés. O pensamento aristocrático dos famosos e ricos é mesquinho. Tremem ante a morte. O homem simples sabe que vai morrer, mas segue sua vida mesmo que seja vida de privação e doença. O rico teme perder sua sorte. Em especial o crente ortodoxo. O sentimento que é irracional tem condições de responder pela pergunta que o fez desesperar.

A contragosto de sua razão retorna então a crença antiga abandonada na juventude. Essa crença não é aquela dos teólogos russos e nem da igreja russa. Essa crença é mística, interior. É crença observada no estoicismo da gente simples e não no epicurismo dos ricos. Essa é a verdadeira existência. Ainda a contragosto de sua razão começa a rezar. Não vê resultado nisso. O sentimento de desespero assalta novamente. Mas usa a mesma razão para entender onde há a inconsistência que o faz desistir de se unir diretamente a Deus. Não crer é desejar o tiro na cabeça. Crer é querer viver, é a vida autêntica.

Não sem dúvidas que o assaltam, Leon vai se paziguando. A resposta que procurava acerca do significado da vida tem resposta na fé. Na fé que a gente simples lhe ensinou. Essa é a fé verdadeira.

Esforça-se para se harmonizar com a igreja ortodoxa russa. Mas todo o aparato externo só o força a repulsa. O caminho que quer seguir, a igreja interpreta como herege. Na verdade, as outras cristandades acham a igreja ortodoxa russa herege. Tenta entender a babel doutrinária doutras fés cristãs. Uma reconciliação é em vão. A fé do povo que faz a roda da vida girar é que autêntica. A leitura da vida de Macário, mártires e outros argonautas do mundo interior é mais vivo do que doutrinas que insultam a razão do homem que pensa. O finito perde-se no finito.  

Li “Uma confissão” pela tradução de Rubens Figueiredo formado em língua russa. Sua introdução da presente obra é acuidada e de interesse a estudiosos da literatura.  

H.D’A

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