O abismo - Resenha



Que característica do universo humano mais nos abissaliza? E quando identificado, tal abismo nos abisma, isto é, deixa-nos perplexos? É lugar comum à crítica do autor de David Copperfield e Oliver Twist o tema da pobreza. A Inglaterra de seus contos, novelas e romances está sempre repleta de sujeira, lama e miseráveis. Mas há algo que me chama mais atenção do que o aspecto social do autor, aquilo que chamo de “correspondência telúrica” entre Natureza impessoal e a psicologia dos personagens. Em seu romance mais policial por título “O abismo” percebe-se a influência do lugar físico [1]sobre as ações dos personagens de forma bem clara:
“... as suas pegadas sucedendo-se nos mesmos lugares na lama escura, acabaram por traçar como que um labirinto. Não seria isso a imagem de sua vida, dos obstáculos que o acaso levantara na sua frente, e o inextrincável dédalo onde seus erros a afundaram? ” p. 12.
Walter Wilding e Jorge Vendale são vítimas de um “erro fatal”, como diz a senhora Goldstraw, que viu o equívoco entrelaçar a vida dos dois sócios quando ainda infantes num orfanato que trabalhara quando se chamava Sally. Senhora Goldstraw faz uma revelação perturbadora a Wilding. Sua mãe afetuosa que deixou enorme fortuna não era verdadeiramente sua mãe, mas mãe de outro Walter Wilding. O costume da época era “mães desgraçadas” sabe-se lá por quais motivos deixarem seus bebês recém-nascidos no orfanato por nome “Hospício dos enjeitados” a fim de um dia – claro, se esse dia chegasse – reavê-los. Assim começa o romance. Mas parece que a mãe de Walter Wilding, o verdadeiro, custou a busca-lo, uma lacuna de doze anos. Outra foi a frente e adotou o verdadeiro Wilding. Quando este saiu do orfanato, o nosso órfão, vítima do “acaso” – este é o nome que os personagens se valem para chamar a sorte – logo chegou e deram o nome do verdadeiro Walter Wilding a este. Feito isso, doze anos após, quando a mãe do verdadeiro Wilding fora resgatá-lo acabou levando um “falso” – que de falso, ou seja, mal caratismo nada tinha – Wilding. Dispensou-lhe todo amor e carinho. Veio a falecer e o bom rapaz herdou toda sua herança. É neste pé que começa “O abismo”.
Senhora Goldstraw havia passado por uma entrevista a fim de ser selecionada como governanta da casa de “Walter Wilding”. Uma vez sendo aceita por Wilding, essa boa senhora ao se deparar com um quadro da mãe do novo patrão não consegue disfarçar a sua afetação. Wilding não permite tal comportamento e ordena que a boa senhora se explique. Coitado.
Me passa que uma crença da época, isto é, as expressões e feições do rosto de uma pessoa podia revelar muito da índole de alguém é algo bem acentuado no romance. O falso Wilding abate-se mortalmente com aquela revelação. Faz-se obcecado na procura do verdadeiro filho da boa mulher que lhe acolheu. Todas as buscas se dão em vão. Prepara prematuramente seu testamento. Seus amigos o admiram, mas não sem estranhamento. A lucidez de nosso homem só declina. Num dia morre no colo de Goldstraw.
Jorge Vendale é seu sócio e é ele quem deve continuar os negócios da adega. Vendem vinho dos bons. Mas apesar da marca impressionante que Wilding deixa nada perturba mais Vendale do que sua obsessão por Margarida. Esta está sob cuidados de um parente que é sócio de Vendale. Daqui em diante o abismo só se acentua. Julio Obenreizer é típico hipócrita que não acredita em nada do que fala. Toda sua verborragia sobre diferença entre suíços e ingleses é mero faz de contas. O pior, Vendale nem se esforça por descobrir. Está na cara. Esse comportamento logo identificado por Vendale é o suficiente para que mantenha seus olhos abertos com esse homem falso. Mas deve disfarçar que o suporta em nome do amor que dispensa a pupila do hipócrita.
Na medida que o romance avança, Vendale consegue, enfim, declarar-se a Margarida. Cortejar a moça não é tarefa fácil pois que vive sob o cárcere invisível do tutor e de uma governanta. Mas numa bendita oportunidade consegue declarar-se. Um mal a menos, Margarida também ama-o. Obenreizer vê a oportunidade para criar sua teia diabólica. Aproveita-se do momento para impor um tipo de dote esdrúxulo. Finge não ser o suficiente o que Vendale tem para oferecer a Margarida. Vendale consegue negociar certo valor a fim de que contraia o matrimônio. Negócio fechado. Mas a descoberta de um desvio de valor altíssimo nos negócios da empresa pode colocar a fortuna de Vendale em risco. Este tudo empreende para tentar resolver a questão pessoalmente. É avisado pelos sócios noutro país que tome cuidado. Obenreizer se dispõe a acompanhar o sócio rumo a uma jornada mortal. Vendale aceita sem resistência. O caminho e o tempo requerem companhia. Mas não imagina que esse companheiro o quer matar. É Obenreizer o autor do desvio da absurda soma de dinheiro. O tempo não dá trégua. A escuridão, o silêncio, a neve e os abismos do caminho são concordes com sentimentos assassinos. Obenreizer dopa Vendale duas vezes. Procura o precioso documento que o incriminará. Em vão. O tempo e o precipício se fazem cumplices, é a hora da morte. Obenreizer investe contra Vendale. Este, luta desesperado pela vida. O abismo o engole. Obenreizer foge.
A luz impessoal não brilha naquela noite escura e gélida. Mas a luz humana tremula indomável no peito de Margarida que avisada por um empregado antigo da casa da mãe de Wilding de um presságio não vê outra opção a não ser empreender perseguição ao namorado e ao diabólico tutor. Se não fosse esse ato heroico, Vendale teria terminado sua vida ali. Foi salvo pelo ato indômito da moça.
Obenreizer está em maus lençóis. Tenta reaver o que está garantido por lei. Mas Margarida com auxílio do advogado de Vendale e Wilding estão trabalhando para entrarem em acordo de emancipação. Não é fácil lidar com Obenreizer. Como se vê encurralado, uma vez que sua tentativa de assassinato fora em vão, tenta um último golpe. É que no calor do duelo entre ele e Vendale, este revelou a Obenreizer que Wilding não era o verdadeiro dono da herança de sua mãe, mas outro que talvez que morasse na Suiça. Fez essa revelação no desespero de apelar a avareza de Obenreizer. Lembrando desse episódio e trabalhando para um tabelião consegui sabe-se lá sob qual inspiração achar documentos a muito embolorados e velhos e constatar que o verdadeiro Walter Wilding era Jorge Vendale. Bravo!
Essa revelação só impressiona o leitor. Os personagens estão sob a tensão de incriminar Obenreizer e com esse trunfo fazê-lo assinar a emancipação de Margarida. Conseguem. Um matrimônio é o próximo passo do romance. A essa altura o ato corajoso da moça já se fez saber. Todos a admiram. Em meio ao abismo escuro e lodacento que pode vir a ser as relações humanas, aquela luz pura como o céu azul, mantinha-se acesa. O órfão Wilding era da mesma estirpe, mas estava morto. Casam-se os pombinhos. Que fim teve Obenreizer? Morreu despedaçado por uma avalanche bem no local onde tentara dar cabo de seu sócio. Enfim, em algum lugar do universo humano o bem venceu o mal.
H.D.A.      


[1] O mesmo se dá em “O cão dos Baskervilles” de Arthur Conan Doyle. É impossível não perceber que a ação pantanosa dos personagens não se confunda com o pântano onipresente na maior parte da história.

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