O poço - Um olhar




O que é óbvio e não é óbvio no longa "O poço"
Para João Rosa
Sinceramente, eu não ia ver esse filme. Porque me mantenho interessado na aquisição de conhecimento [e entretenimento] em primeiro plano através da leitura.
A sétima arte também é um caminho agradável de aquisição do saber. Mas como todo aficionado em leitura sabe que uma obra que “vira” filme sempre possui disparidade com a obra visual, então, eu prefiro sempre primeirissimamente ler do que ver.
“Mas, amigo, a obra de Gaztelu-Urrutia é um original da sétima arte! ” Verdade. Mesmo assim não há como interpretar a ambiguidade do filme – a ambiguidade, veja bem, e não a crítica gritante que aparece encarnada na máxima de Trimagasi: "Existe três classes de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem" ­– sem ter lido algumas obras.
O filme todo é um soco no estômago. Ele começa com prisioneiros numa espécie de labirinto. "Você quis dizer, poço!" Que seja! Um Labirinto vertical. Este possui níveis. E segundo o desenrolar do filme sabe-se que é possível chegar ao seu último nível [em cima ou para baixo? ] Pois é, uma leve ambiguidade da obra. De somenos.
Partindo do filme, parece que os prisioneiros em cada nível estão ali como uma espécie de purgar alguma coisa de sua vida. Um vício? Um crime? Se partir do personagem principal que alguém o chamou de Dom Quixote "moderno" trata-se de um vício. Do seu primeiro companheiro de nível, um crime. Mas todos que ali estão subtende-se que lutam com muita coisa, é o que parece sugerir o filme quando aparece certo prisioneiro que prefere suas "moedas" [dinheiro] ao invés de alimento.
A prisão vertical lembra "os estágios do inferno de Dante". Quanto mais acima mais perto do... "Céu"? E quanto mais baixo mais perto do inferno. Alguém salientou bem o simbolismo do 333 multiplicado por dois prisioneiros a cada nível que dá...
Num certo momento revelador do filme um novo parceiro de cela de Goreng, uma mulher, faz uma pergunta: "quem traria para cá um livro?" O livro em questão é de Miguel de Cervantes e se trata do clássico "Dom Quixote". É importante esse símbolo no filme, uma vez que o personagem principal se vê em vários momentos psicológicos em que a realidade começa a confundir-se com devaneios. Essa ambiguidade permeia toda a obra até o momento em que muita gente acha dificuldade para interpretar, a parte final da obra.
O filme parece subtender uma pujante crítica ao sistema social do mundo onde quem está em cima pega a melhor parte e quem está embaixo alimenta-se com sobras. Isso é uma faca mais afiada do que a samurai plus de Trimagasi. Mas para ter essa melhor parte há necessidade de uma selvageria que sobressai a parte mais animalesca do homem, seu egoísmo. Como não enlouquecer ante uma realidade dessas que estripa sem número de humanos de boa parte do mundo?! Essa encarnação da realidade que deve ser devorada por cada cidadão que sabe muito bem o que é vender o almoço para comer a janta é suficiente para desestabilizar qualquer um.
Mas a realidade parece não mais sensibilizar os "Trimagasis" da vida real. Eis então "O poço" para trazer à tona: "Há um sistema cruel no mundo que a metáfora dele está aqui. Vejam e sintam repugnância!" Eis o nocaute da obra.
Dado o estado de coisas que se revelam fomentados por uma plataforma cheia de comida trazida a cada nível as duplas de confinados e por certo tempo não demora muito para “o lugar” dar boas-vindas a Goreng. Isso o desestabiliza, repito. Os habitantes do poço possuem demandas particulares, desde sobreviver, purgar algum delito, proteger a procurar por uma redenção. Goreng já está exposto. A roda começa a girar. Ora está num nível, ora noutro. Ora sua vida passa por um triz, ora em estágio melhor. Ora está lúcido, ora a lucidez o abandona. E há aquele momento em que lucidez e realidade se imiscuem como se Dom Quixote fosse.
Os fantasmas do lugar já fazem parte de sua psique. Pessoas que estavam vivas ali naquele buraco e que agora mortas o atormentam. Verdade e ilusão se misturam até Goreng decidir juntamente a um novo parceiro de "cela" [nível] quebrarem o mecanismo do labirinto.
Para tanto há necessidade de descer fundo naquele abismo afim de levar uma mensagem. É como disse a voz de Trimagasi: “É preciso ir até o limite da loucura”. Os novos parceiros descem ao último nível fazendo coro com a duplicidade final da obra. Final, aliás, que confunde.

Descendo às regiões mais baixas do poço (“Até que enfim você usou o nome certo! ”) cada dupla de personagens vai revelando o nível de bestialidade comum a ambientes onde os crimes mais cruéis são praticados sem nenhum problema de consciência. Parece que naquele fim há uma esperança. Não fica muito claro se essa esperança é real ou não. Mas os personagens em seu mergulho buscam não somente quebrar o sistema como também redenção. Há redenção para esse mecanismo da vida real onde pessoas são devoradas em nome da ganância, do egoísmo e do salve-se quem puder? Como não enlouquecer ante todo esse estado de coisas que metaforicamente é manifestado no poço? Há redenção para um sistema onde o lema é “Salve-se quem puder! ”? Essa é uma mensagem que parece – com sua permissão Trimagasi – ser óbvia.
Helder D’Araújo

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