Sophia
sempre foi muitíssimo curiosa e esperta. Devido à ausência do pai, diplomata, e
da mãe, uma bem-sucedida empresária, acontecia que lhe restava muito tempo para
ler. Um escapismo ante o sentimento de inadequação que angustiava seu coração.
Mas Sophia preenchia esse abismo devorando livros. Andava pesquisando acerca de
obras e comunidades que exploravam as potencialidades do eu interior, da mente.
Seu
irmão mais velho achava que essas coisas não passavam de charlatanismo. Suas
críticas eram severas. Um escândalo havia saído na imprensa e só confirmava as
suspeitas dele. Mídias velhas e novas noticiavam com minúcias as podridões de
um famoso divulgador da telecinésia daqueles dias. Sophia acompanhava os
variados canais virtuais do telepata pela internet. Sentia-se atraída por
aqueles assuntos do mundo misterioso.
Ela
aproveitou para ler um pouco mais naqueles dias de férias. Não gostava muito do
ambiente da empresa da mãe. Esta sempre a convidava para passar o dia com ela,
mas em vão. Sophia tinha herdado a curiosidade do pai intelectual. E como a
biblioteca ficava acessível a toda a família, Sophia se perdia “mar adentro” (é
que a biblioteca de seu pai possuía milhares de livros). Aproveitou aquelas
férias para saciar sua necessidade de sentido, já que não estava atarefada com
os trabalhos da escola nem com exercícios das aulas de idiomas.
Voltou
avidamente todas as suas energias para os fenômenos psíquicos. Devorava
biografias de pessoas famosas que tinham deixado em testemunhos escritos
verdades da realidade das potencialidades da mente.
Ficou
convencida mais ainda quando um cientista famoso tinha dedicado toda sua força
crítica para analisar um grupo que se reunia aos sábados na pequena cidade onde
sua família morava. Ele podia negar esse negócio de poderes da mente. Mas os
fenômenos que lá aconteciam, não.
Um
escritor nacional dedicou um romance acerca de alguns fenômenos esquisitos que
vinham acontecendo em meio ao povo que se aventurava com forças desconhecidas.
Sophia
tentou até filiar-se a alguma comunidade que tratasse dos assuntos que ela
tinha lido com interesse aficionado nos mais variados livros. Mas não a
aceitaram porque ainda era menor.
–
Mas falta apenas alguns meses para eu ser maior! – Bufava após ter lido o
conteúdo da Ordem a qual simpatizava.
Somando-se
a isso, havia o fato de a menina sentir-se invisível dentro da concha estreita
da família e da sociedade. A crise piorava quando o pai, que raramente estava
em casa, só vivia com “o rosto colado no diabo do notebook”, como sua mãe
sempre dizia. Ele resmungava em solilóquio:
–
É o meu trabalho. Como terão todo o conforto que têm?
A
falta de contato, pois que cada vez mais Sophia fechava-se em seu mundo, gerava
curtos circuitos na relação familiar e estranhamento com os colegas da escola.
Nesta seu círculo de amizades constava em zero. Uma garota disse a outra:
–
Conheço Sophia há anos. Foram raras as vezes que ouvi sua voz.
Numa
manhã daquelas férias, o irmão mais velho acordou cedo para acudir as urgências
da cachorrinha. Era o dia de Sophia passear com a cadela. Mas Sophia
recusou-se. Trocava a noite pelo dia lendo e acabava que ficava preguiçosa no
outro dia.
Infernos!
Essa esquisita não cumpre com as obrigações! Pensou o irmão.
Sophia
virou-se na cama cobrindo o rosto. A cachorrinha, toda feliz, nem fazia noção
do que acontecia no mundo dos humanos, tampouco do fenômeno que estava para
desvendar-se, só queria saber de curtir seu passeio e afugentar os pombos.
Foram, então, o irmão de Sofia e a cadelinha para o passeio matinal.
Quando
voltavam, acontecia o ritual de sempre. A cachorrinha entrava eufórica. Logo
farejava a localização da sua dona. Era como se ela fosse dizer como foi o
passeio. Mas voltou do quarto ainda a procurando. O irmão foi ver se Sophia
estava dormindo. Notou que ela não estava na cama. Foi ao outro quarto, mas em
vão. Pensou: Deve ter ido ao banheiro.
Voltou
ao sofá para ver as novidades nas redes sociais. TV ligada. Ele mantinha o
ritual do pai quando estava em casa. Jornal da manhã. Mas ele mesmo nem ligava
para o que estava sendo noticiado. A cachorrinha deitou-se devido ao cansaço do
passeio. Entre um like e views, pensava: Aonde foi parar essa menina?
O
que ele não contava era que de tanto a garota sentir-se invisível, algo
insólito havia acontecido.
Após
o passeio, a cachorrinha entrou, e a invisível estava na cozinha tentando beber
água. Aí ela começou a falar:
–
Henrique, eu estou me sentindo esquisita – mas somente ela via o irmão e a
cachorrinha. O garoto não conseguiu vê-la, tampouco ouvi-la. Atravessou-a como
se fosse uma bruma, bebeu água e rumou para o sofá.
Logo
Sophia notou que o irmão não deu atenção e começou a perceber o horror daquilo
tudo. Suas suspeitas se confirmaram:
–
Meu Deus! Eu fiquei, de fato, invisível – constatou boquiaberta e petrificada.
Ela
correu para o sofá gritando:
–
Henrique! Henrique! – Mas o irmão de cabeça baixa continuava a navegar,
imperturbável (não de todo: estava se perguntando para onde teria ido aquela
menina. As ordens de sua mãe eram expressas: cuide de sua irmã!)
Ela
lembrou desse negócio que cachorros veem espectros etc. e começou a chamar a
cachorrinha, mas em vão.
–
E agora? – Perguntava-se aflita.
Desabou
em choro. Os minutos se passaram.
O
irmão já tinha visto todas as suas contas nas redes sociais e foi para o
computador jogar online.
–
Pronto. Agora mesmo que ele não me nota, diacho! – Bufou a mocinha aflita.
Ela
se levantou, incógnita, de seu assento da poltrona do pai e foi deitar-se
cansada daquela angústia de ser invisível de verdade.
O
irmão até fez um café, mas não bebeu. O jogo estava chato. Acabou retornando ao
sofá e logo adormecendo. Essas coisas haviam se passado num horário bem
cedinho.
Então
sonhou que ele era quem estava invisível. Acordou agoniado. Foi até o quarto de
Sophia e lá estava sua irmã. Acordou-a aos berros. Ela, feliz por ter
retornando ao estado de materialidade, ia contar o pesadelo que lhe ocorreu
naquela manhã, mas o ouviu primeiro pois que sua angústia era notável.
–
Sophia – começou a narrar – sonhei que nós estávamos em nossa casa... aí, de
repente, eu ficava invisível para você. Você me procurava, mas não me
encontrava. Eu fazia de tudo para chamar sua atenção, mas tudo em vão. Nossa!
Que pesadelo!
–
Aflito – continuou a narrativa daquelas esquisitices – eu tentei registrar
aquela sensação horrível de não ser visto. É um pesadelo terrível a gente
gritar e não ser ouvido. É um pesadelo terrível a gente tentar se comunicar e
ser ignorado. Nosso Deus! – Benzia-se.
Foi
aí que ele se lembrou do que ocorrera mais cedo. Perguntou:
–
Sophia, quando eu cheguei com a cachorrinha, aonde você estava?
Ao
que ela respondeu:
–
Fui jogar o lixo... – pausou pensativa em tudo o que o irmão acabava de narrar.
Tudo
foi muito real para ela. Na verdade, uma situação que até então pode ser
interpretado como mero devaneio da cabeça de uma menina solitária havia na
verdade se concretizado.
–
Nossa! Demorou – suspirou sentindo-se amortecido.
–
Eu cheguei e você estava dormindo no sofá – mentiu.
A
irmã de Henrique não quis falar-lhe nada. Ele era um cético. Não gastarei meu
latim, mentalizava uma das frases do pai. E mesmo com argumentos de pessoas sérias
que estavam se esforçando para entender a mente humana no quesito mentalismo,
era em vão tentar dissuadi-lo. E o que havia acontecido, por estranho que
pareça, foi que a garota ficou, por algum tempo, verdadeiramente invisível.
Devo
parar de ler essas coisas de paranormalidade. Dizia consigo, meditativa,
enquanto tomava seu banho.
*Este
conto será publicado na importantíssima revista Nikkei Bungaku, 66ª edição.
Uaaaaauuu ... ! Excelente... O texto fisgou-me logo de início... e "vivi", por alguns minutos, na casa da garota... Pude "ver" o silêncio... o espaço... e a garota. E que garota... essa é das minhas.. rsrsrsr
ResponderExcluirOi, Regina. Saudações! Gratidão por seu comentário. Que bom que gostou do conto. Fique à vontade aqui neste espaço. Evoé!
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