Ricardo retornava à cafeteria não mais para saborear sua
paixão somente. Havia algo, misturado ao ritual que o estimulava, que o
mantinha cativo daquele retorno. Motivo: Os
olhos gentis e magnéticos da atendente. Desde a primeira vez que se
cruzaram foi como se ele estivesse diante daquelas coisas majestosas da
natureza. Bastou um único olhar para abissalizar e comover toda a sua
indiferença ao que ele desprezava: o amor idílico. O esmagamento da delicadeza o
açoitava.
Eloise, venezuelana, recém chegada no país era uma atendente
de cafeteria no Distrito Federal. Estava longe de seu mundo. Completa extranjera.
O matiz de seus olhos carregava todo o
poder exibicionista do pôr do sol. Seus cabelos sedosos, de indígena, evidenciava
a tonalidade de piche. Era impossível mirá-lo sem ficar marcado. O corpo magro
de menina-mulher acentuava o viço da juventude.
Ricardo a amou como amava o aroma do café pela manhã. A amou
como amava o gosto da bebida, amargo – love is war! A amou como amava
todos os seus livros.
Aquele olhar era como estar sob a mira de um tigre de
bengala e sentir a eletricidade do perigo ante o ataque iminente. Aquele olhar
era como ser consumido pelo mar revolto. Olhar de coerção irresistível.
Mal ouvia Eloise cuidadosa para fazer-se entendida no idioma
português. As químicas de suas sinapses o possuíam numa alucinação febril: os
viam ante o pôr do sol; os viam mirando as constelações; os viam jogados na
relva de mãos dadas sob lentes escuras admirando o sol no centro do halo...
sem-número de devaneios. Eloise desconhecia a veneração do cliente. Sem dúvida,
de tantos outros. Que faria o pobre rapaz para ao menos comunicar seu
encantamento?
Escreveu poemas. Tantos como se possuído estivesse. Fez um
livro. Após um ano de segredo apresentou o livro pronto. As maçãs brancas da
bochecha da moça ficaram rosadas. Havia
uma dedicatória. À única dona dos
olhos cósmicos.
Perturbou-se a brisa. Desgarrou-se o aroma doce. Agitou-se a
imperturbabilidade calma das águas cristalinas paridas por fontes murmurantes.
Fraquejou a frenética chama. Até o fim daquele dia Eloise mal conseguia servir
o café sorvida pela perplexidade.
Ricardo frequentava ali por alguns anos. Nunca se insinuou,
nunca fez um gracejo. Ficava perdido e mudo acompanhando com o olhar os
movimentos da moça. Sempre discreto. E agora um boom. Que queria ele com
aquele gesto? Mais que um café? Mais que um atendimento? E agora? Não bastava
aqueles homens execráveis que a importunavam. Como lhe dar com aquele novo
episódio? Devolverei o livro. Passarei
uma bronca. Direi que em breve serei noiva. Ensaiava uma saída. Mas Ricardo
sumiu. Eloise não leu poema nenhum. Deixou o livro fechado. Por alguns meses
aguardou o seu devoto. Nada. Um dia ela conseguiu um trabalho melhor. Já tinha
até esquecido aquela história. Contudo, a imagem indelével do olhar da moça
alimentava o olho da mente do jovem escritor como lenhas atiradas no fogo.
Consolava-se apenas com a repetição imagética. Anos se passaram.
Um dia ela estava arrumando suas coisas e a sincronicidade desvelou
o livro. Lembrou-se daquele episódio fantasma. Riu. Abriu aleatoriamente num
poema longo que descrevia toda a vertigem do rapaz ao ter se encontrado com o
matiz indizível e gracioso de seus olhos. Inquietou-se. Estava quase dividindo
o mesmo teto com seu noivo. Nunca tinha sido alvo de uma sensibilidade idêntica
a descrita nos versos. É verdade. Ele
sumiu. Lembrou-se. Tentou fazer contato. Ricardo agora estava perdido em
seus afazeres. Recebeu um e-mail. Não quis responder. Vida que segue. Eloise
quis se culpar, mas não achou razoável. Ela não podia fazer nada. Seu noivo não
gostava de café? Paciência. Não gostava de ler poemas? Mas gostava muito do
sexo. Ela também gostava.
Mas e se
a força desses versos for verdadeira?
imaginava enquanto o noivo era devorado por sua intimidade. Ficou indiferente
aos sons espasmódicos emitidos do parceiro devido a ascensão ao paraíso. Ela
olhava perdida para a imagem num quadro, tratava-se duma cópia de O beijo de Klimt.
Lembrava-se da época de atendente. Lembrava-se de seu cultor. O noivo já
dormia. Conjeturava se Ricardo ainda pensava nela. Improvável. Nem mesmo respondeu o meu e-mail. Que é isso menina? Você
está praticamente casada. Esqueça! Mas a inquietação reverberava feroz,
indomável.
Coincidentemente soube que Ricardo estaria numa bienal para
falar de um novo trabalho. Titubeou. Acabou aquiescendo. Ricardo estava
autografando e tirando fotos com alguns leitores. Ela ficou de longe
observando. Escritor de mania inveterada aguardava uma xícara de café. Impensadamente
a moça pediu à atendente para servi-lo. Achou
atípico, mas aquiesceu. “É um amigo, quero surpreendê-lo”. Ricardo estava de
cabeça baixa olhando suas redes sociais quando sentiu uma presença atípica. Ao
levantar os olhos estava diante de um milagre, uma graça que somente os santos
místicos sentem.
“Aqui está o seu café. Trouxe junto com ele algo que te
pertence”. O homem ficou boquiaberta. Aquela sensação era como o barato de um
viciado. “Mas antes de entregar o que é seu, me diga uma coisa. Nesse poema ‘olhar’
você sentiu tudo aquilo que descreveu?” Queria certificar-se. Ele ficou feliz
ao menos por saber em primeira mão que ela havia lido seus aflitos versos.
“Sim, como agora, mas com muito mais intensidade”. Ouvir aquilo foi como ter
recebido a chuva em época de estiagem. Ela entregou o livro apesar dele tentar
repelir o gesto. Famélico, abeberava-se o quanto podia de sua presença, pois pressentia
que aquele encontro nunca mais iria se repetir. Esquentava-se diminuto com
aquela sensação como se fosse o último ondejar da chama vencida. Não obstante o
atípico ex nihilo (isto é, o desvelamento intempestivo da presença de
Eloise) o silêncio ameaçava nadificá-los para sempre. Ele pensou em pedir para
ela ficar. Mas achou melhor não. Fugidia a moça se desfez como a fumaça do
fósforo apagado. O evento foi finalizado com sucesso, mas com um cravo
espezinhante.
À noite no apagar das luzes daquele dia os espíritos
alquebrados buscavam o consolo no colo de Orfeu. Ricardo abriu o livro
coincidentemente no poema que amparou seus olhos órfãos. Releu. No fim do poema
havia uma inscrição de Eloise: “Se essas palavras forem reais espero que seu
autor encontre seu oásis. P.S: siga a pista nas seguintes páginas”. Cada número
de página marcado por ela era referente a cada digito de seu contato. Sentiu-se
torrado. No silêncio de seu quarto segredada pela tez escura da noite ela aguardava
o sabor da ligação. Brigou feio com o noivo, não sem propósito, faminto de seu
corpo apenas para permitir-se sorvida por seu admirador. O telefone enfim tocou
(após quebrar cabeça com a ordem dos dígitos identificados em cada página do
livro). Ela não atendeu. Ele sentiu-se estupido. Mirava a escuridão indeciso
dum trago. A circunferência clara da lua cheia sugeria chantily. O led se
iluminou com uma mensagem seguida de localização: “Seu café está pronto”.
*Este texto faz parte da coletânea "Nasce o Amor" do projeto APPARERE. O autor teve outros trabalhos publicados pelo projeto (5ª coletânea de sonetos; Amizades em tempos de pandemia e coletânea centenário Maria Clara Machado). Abaixo segue o link aos interessados em ter o trabalho impresso:
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